Setembro de 2018, em Igrejinha, cidade com menos de 35 mil habitantes na serra gaúcha. Dois rapazes se encontram e vão até uma festa. No local, um deles consome um pequeno selo, fica apenas 15 minutos com os amigos e se separa do grupo. No dia seguinte seu corpo é encontrado a 100 metros do local. O amigo garante que o falecido havia consumido LSD – ácido lisérgico.
No Departamento de Perícias Laboratoriais do IGP – responsável pela análise de todas os materiais apreendidos como drogas pela Polícia Civil e Brigada Militar – iniciam os testes com o material enviado após a necropsia feita pelo Departamento Médico Legal: sangue, urina e vísceras. Os testes iniciais de alcoolemia (álcool no sangue), consumo de drogas, venenos e remédios dão negativo. Em dezembro, um novo teste é realizado para pesquisar o consumo de LSD – também sem indicar nada. A causa da morte não fora definida.
Os resultados das análises e as características do óbito soavam como um desafio para a perita Fernanda Rafaela Jardim, responsável pelo caso. A suspeita era de que se tratava de uma droga sintética- substâncias com estrutura e efeitos farmacológicos semelhantes às drogas controladas, mas que possuem variações para evitar serem classificadas como ilegais ou detectadas em análises laboratoriais. Parecem LSD, mas são muito mais letais. Elas são desenvolvidas pelos designer drugs – pessoas com formação em Química ou Farmácia, que alteram a composição das drogas já proibidas para que elas possam ser vendidas, burlando a legislação.
Mas como saber qual era essa droga? Os testes feitos com as amostras biológicas no Laboratório, junto ao banco de dados de substâncias proibidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não apresentaram resultado conclusivo. Uma saída seria a compra de um modelo, um material de referência, produzido pelas grandes empresas farmacêuticas mundiais sempre que se descobrem novas drogas sintéticas. Esse padrão é vendido para os laboratórios de perícias do mundo todo usarem como base de comparação. Mas o preço de aquisição é alto, a burocracia para a compra é grande e o tempo de entrega muitas vezes é até maior do que o período em que essas drogas costumam circular nas festas do verão europeu, americano e depois no mercado brasileiro- entre quatro e seis meses.
A saída foi apelar para uma solução “feita em casa”: se não havia um padrão disponível para comparar com as amostras, o jeito seria descobri-lo. Em parceria com o Laboratório Nacional Agropecuário do Rio Grande do Sul (Lanagro), a Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA) e o Instituto de Química da Ufrgs, os peritos do IGP usaram amostras no formato de selos ou comprimidos, encaminhadas em outras ocorrências pela Polícia Civil. Utilizando cinco diferentes técnicas analíticas, indicadas pela Agência Antidrogas da ONU (UNODC), os peritos foram cruzando informações, até chegar à composição exata da misteriosa droga. “Nós adotamos critérios de confiança suficientes para fazer essa validação”, garante Lara Soccol Gris, Chefe da Divisão de Química Forense. A substância estava finalmente identificada: 25E-NBOH, um composto da família das fenetilaminas. Em uma concentração menor, ele propicia efeitos alucinógenos e estimulantes, semelhantes ao ecstasy e ao LSD. A descoberta foi praticamente paralela à Resolução 254/2018 da Anvisa, que, desde 1998, publica portarias nomeando as substâncias proibidas no Brasil.
Método – ter encontrado o padrão para poder comparar a droga não encerrava o trabalho, nem era suficiente para confirmar a causa da morte do jovem de Igrejinha. No caso dele, o material oferecido para a análise não estava em nenhuma das formas mais comuns de comercialização- selos ou comprimidos. A pesquisa seria feita em amostras de sangue e urina do cadáver. Um equipamento chamado LC/MS/MS (que separa a substância e depois fornece informações sobre as moléculas) pode identificar o 25E-NBOH nas amostras, mas a máquina sozinha não sabe como pesquisar. É preciso oferecer os parâmetros a serem usados na pesquisa: volume de amostras, temperatura, pH, tipo de solvente, íons a serem identificados, etc. Surgia o segundo desafio: descobrir os parâmetros ideais e, assim, criar um método para a identificação. O trabalho está sendo desenvolvido pela perita Maria Cristina Franck, em sua tese de Doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “Pessoas morreram porque ingeriram isso. Então, não vou partir da teoria. Vou partir da prática, com o que estamos vendo nas drogas, para criar um método que identifique a substância no material biológico”, explica ela. Em junho deste ano, finalmente o 25E-NBOH foi identificado no sangue e na urina do rapaz. A causa da morte estava esclarecida. Pela primeira vez no Rio Grande do Sul, um Laudo pericial confirmava morte por uso de drogas sintéticas.
A descoberta supre uma carência histórica do IGP. A aquisição do LC/MS/MS, em 2017, e o desenvolvimento do método permitem que as drogas que já tiveram o padrão identificado sejam submetidas a um método que as localize em amostras biológicas, como sangue. “Essas análises são essenciais para que possamos emitir Laudos incontestáveis”, afirma Daniel Scolmeister, Diretor do Departamento de Perícias Laboratoriais.
Impacto – todo esse trabalho pode parecer muito desgastante para identificar uma única amostra de droga. Mas somente com a delimitação desse padrão se pode iniciar a pesquisa em outras centenas de amostras que chegam mensalmente ao IGP. Desde 2014 foram caracterizados 15 novos padrões de NDS – Novas Drogas Sintéticas. O trabalho, paralelo às análises de rotina, pode durar cerca de um mês. “A identificação do padrão diminui a impunidade. Damos a resposta científica de que, mesmo diferente do padrão inicial, se trata de uma droga. Isso pode levar à condenação do traficante”, afirma o perito criminal Marcos Carpes, que participou da identificação de vários desses padrões. Ele ressalta que, em alguns casos, a identificação feita nos laboratórios do IGP aconteceu antes mesmo que a Anvisa emitisse as portarias que consideram a droga proibida.
A missão, agora, é aplicar os métodos desenvolvidos para detectar o 25E-NBOH e todas as outras novas drogas psicoativas às amostras de casos suspeitos, que foram armazenadas enquanto a metodologia não tinha sido criada. Como parte do problema de pesquisa do Doutorado, Maria Cristina Franck também pretende averiguar se os casos de suicídio entre os jovens aumentam quando existe o consumo destas substâncias.
VOLUMES – O volume de amostras de drogas sintéticas está aumentando. Segundo dados do Departamento Estadual de Investigações do Narcotráfico (Denarc), da Polícia Civil, em 2017 foram apreendidos 18 mil comprimidos que aparentavam ser ecstasy, volume 25% maior do que o registrado no ano anterior. As apreensões de LSD ou assemelhados cresceram 67% no mesmo período.Embora a maioria das cerca de 55 mil análises feitas anualmente pelo DPL sejam em amostras de maconha e cocaína, a quantidade de drogas psicotrópicas passou de 3% para 4% do total entre 2018 e os primeiros meses de 2019. Em 2018, 25,2% das análises feitas em psicotrópicos (grupo maior que inclui ecstasy, LSD e tranquilizantes) foram cetaminas, catinonas, piperazinas, canabinóides sintéticos e derivados de fenetilaminas – as chamadas drogas sintéticas. “Muitos outras mortes podem ter acontecido em função dessas novas drogas sintéticas”, aposta Maria Cristina. “Essas substâncias podem causar agitação, agressividade, psicose aguda e até a morte. São um risco para a saúde pública, porque a dose recreacional é muito próxima da dose tóxica. Se a pessoa erra a quantidade para uso, pode acabar hospitalizada ou desenvolver dependência. Nosso trabalho é ajudar a combater esse tipo de crime” afirma Scolmeister.
Fonte: Ascom/IGP